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Monday, April 23, 2012

LOS MUERTOS


Caos en los cajones de la casa.
Degeneración espontánea de las cosas
nunca ordenadas. Tu las abandonas
donde posan. Siempre prometen lo mismo
sin embargo, jamás se han cambiado. 
Igual que tus sueños, años, amores pasados,
y que sólo dejaron un sabor a olvido 
de tantos de sus prodigios.
Los días amanecen como en desvelo.
Sólo la sucesión los pone satisfechos.
No se permiten dejar escapar una palabra.
No gestan gestos. Si te encuentren por la calle
no esperes que se paren. 
Se llevan con un aire demasiado agotado para
desear oír llamar su nombre
o traicionar dondequiera que se esconden.
Recuerdos recorren las brechas de las habitaciones.
Gruñen las escaleras sin haber los pasos.
Paredes se descascaran de voces en ellas incrustadas. 
Hay muertos que se borran del linaje de los retratos, 
hay muertos de afición empajados como mascotas 
vigilando el guardarropa.  
Hay una almas lucidamente asombradas,
otras perplejas como un paraguas.
Hay muertos zumbando espiralmente como moscas,
infinitos como roscas.
Revisiones intentan en vano conjurarlos,
ellos se quedan, no saben quedar parados. 
De tanta vigilia, parecen de hecho
hechos polvo de tanta fatiga.
Con todo, tumbados, se reposan.
Y se olvidan.

UN DÍA DE TODO SERÁ PRECISO


Un día de todo será preciso, 
del deseo y de su reveses,
de la demora y de sus peligros.
Preciso como carece 
el hueco de las entrañas de rellenarse,
o como el huevo de la memoria lo que más quiere
es un día poder romperse.
Preciso: 
como yo necesito la cáscara de frío
con la que me visto, como me es preciso
el castillo de cartas donde yo habito.
O como una mentira tres veces se necesita,
o una sombra que al cuerpo le siga,
o como un camello ciego de un ojo de aguja precisa.
Entonces, hartos de tanto nada,
no hemos de querer más nada de nada.
Callaremos los sinos 
y serenos nos reposaremos.
Olvido será todo lo que restará a beber,
borrachos del espanto de estar vivos,
soñando sueños risueños,
remotos como ornitorrincos.

Sunday, January 8, 2012

SONETO DE NOME APAGADO



O teu nome eu escrevi na areia,
A onda do mar apagou... (canção popular)

Verba volant, scripta manent (dito romano)

Yo moría sin ella
y ella la vida me dió
(Pe. Anchieta)


Numa tarde de sol, sobre o solo abrasado,
O teu nome na areia deixei desenhado.
E mar e terra punham sua luta de lado
Para poder ouvir no ar o meu triste fado.

E enquanto havia luz sobre a praia baldia
Em que acaba o mar, como suor da terra ardente,
Crendo a letra pudesse emular o existente,
Do alto da pedra um nome lia-se: Maria.

Mas como se converte o momento presente
Sem qualquer solução em instante passado,
Arisca nos deixou a paixão: num repente.

O eterno só nos vê desde o tempo, Maria,
E foge, como o amor e o teu nome gravado
Que eram areia e a onda apagou no outro dia.

Wednesday, January 4, 2012

A PAIXÃO INIMITÁVEL



A neblina acautela os passos
e as boas almas dormem.
Eu não durmo nunca nem deixo
a Madalena dormir.

Prostrados, sentamos sobre a soleira
suja de um bar.
Meu olhar passeia sobre os seus lábios salientes,
um zigoma arrematado numa cicatriz esquerda.

Levanta, bora prosseguir as boléias de proletários,
acrescendo os nossos passos ao emaranhado
de pernas e carros que curvam essas ruas
doridas nos nossos sapatos cansados.

Peregrinemos ciosos de que a estrada
ao mesmo pó nos devolverá,
pois os rumos que fogem deste lugar
não demandam destinações mas emaranhamentos.

E não estranhe se nos perdermos neste labirinto involuntário.
Como não estranhe se nos entranharmos
neste mundo faminto de gente,
feito toda essa gente que copulula nele.

E, no entanto, no fundo das coisas,
onde também somos coisa,
não há desespero,
mas achamento e aparente paz,

paz pesada contra o caos de tudo isso:
paz no travesti adormecido sobre o banco da praça,
nas placas de trânsito retorcidas,
no cachorro atropelado, desviado para um meio-fio.

Paz nas crianças de rua dormidas sob capas de papelão.
Paz pesadelar de que não se sabe, de que não se pode,
de que não se quer
acord-

"Ah, meu Jesus!"
Ahn??
"Não, não você... (risos)
Noossa, que soninho! Jeeesus!

O ônibus passa agorinha...
Jesus... mas que nome o seu...
(meneio de cabeça e risos),
Madalena e Jesus, putz, que dupla a gente!"

Apenas nomes. A confluência de tantos outros nomes. Comuns
como livro, copo, cama.
Só Adão teve um nome próprio, porque era um.
Perder-se talvez seja a sina de quem ama.

Olhos se mergulham como escadas:
"A dona recebeu reclamações, os vizinhos
não gostam de mim
(abre a porta). É por aqui".

Cadeiras. Uma janela medrosa olha a rua de esguelha.
"Os nossos dedos juntos não contariam
(estende a mão mostrando os dedos)
em quantos quartos como esse eu já vivi”.

(...)
“O café vem cada vez menos bom, é pura cevada,
fiz ontem pra mamãe, não tinha gosto de nada,
a coitada nem podia tomar, teve gastrenterite...

É que eu sou meia arvoada".
(ruído de passos)
"O que se vê daqui?” (juntos à sacada)
“A pracinha. Cabeças.

Tantas cabeças que os nossos dedos
não conseguiam contar” (risos,
uma criança grande). Ela vem a mim,
e somos o que sempre fomos: somos todos desejo.

Há coisas demais neste mundo,
há homens demais neste mundo, e pés,
pés demais neste mundo.
Há também muitas línguas,

línguas de lamber, de falares,
línguas bífidas, cada vez menos lúcidas.
E há seios aos pares,
suaves e rumorosos como o motor a diesel.

Ah, também bocas,
de cuspir, de morder, de beijar,
cuspe e dentes e gengiva,
há tantas coisas neste mundo que talvez precise outro.

Amarra os meus braços abertos
contra as estacas da cama.
Suor descendo espesso como sangue
da nuca, das mãos, das têmporas.

Me amarra como um "T",
um "T" de tensões e tatos,
de tesões e olfatos.
Um "T" de êxtase.

A paixão nos arrebata de nós e ao chão nos arrasta.
Se enredam nossas sombras como cobras emaranhadas.
Sou uma só dor, as minhas, as tuas, as dores todas imbricadas.
Sou o suor, os odores, as roupas deitadas e não reclamadas.

Sou imenso como o grito com que me atiro
para além do próprio grito.
Sou o olhar com que me vejo alheio, à parte,
te sabendo o todo, não só metade,

pois na vida ínfima do outro
é que encontramos nossa íntima verdade,
feita de lapsos e de acasos
e de sal e sonho.
Abraçado a ela, quase ouço o passo do momento,
e ela dorme enganchada em mim. O dia quase aceso.
Todo dia e todo homem é um começo,
mas como ser começo, eu que só começo no fim?

Vem, vamos descer.
Quem sabe a padaria não abriu?
É demais tarde ou demasiado cedo,
e as almas inocentes ainda dormem.

Eu não durmo nunca
nem deixo a Madalena dormir.

Wednesday, November 30, 2011

A ESTRADA PARA ÍTACA

a A.C.


(mapa)

I TELEMAQUIA

Asterion

​I am another now and yet the same
​(Stephen Dedalus)

Dunraven dijo que en el interior de la casa
había muchas encrucijadas,
pero que, doblando siempre a la izquierda,
llegarían en poco más de una hora al centro da red.
(Abenjacán, el Bojarí, muerto en su laberinto, Jorge Luis Borges)


II ODISSÉIA (ela-mesma)

1​​ A Concha Acústica

Não sabemos do Mar.
​(Haroldo de Campos)

Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha
(Carlos Drummond de Andrade)

Foi desde sempre o mar.
(Cecília Meirelles)

La mer est ton miroir
(Charles Baudelaire)

O gran mare, che là gemi
su la spiaggia che tu baci,
che qui piangi sotto i remi
(Giovanni Pascoli)


2​ Infinítaca

3​ Descida à Temporada da Espera

Verto-me em ilha, vejo-me nascer,
Retiro dessa ilharga verdadeira
A minha perdição por companheira.
(A Invenção de Orfeu, I:XVII, Jorge de Lima)


4​ O Sonho dos Mortos

levem-me desta varanda
de onde vejo rir o mar limitado e cruel
(Murilo Mendes)

pago se prima di morir vedesse
balzarne in aria i vortici del fumo
(Giovani Pascoli)

By then, if monsters weep, I would have been weeping
​through the half-sleep that still gummed my slitted eyes.
(Dereck Walcott)

Odysseus aber, um es so auszudrücken,
hörte ihr Schweigen nicht, er glaubte,
sie sängen und nur er sei behütet es zu hören,
(Franz Kafka)

wie umringt
von der Stille, die die ganze Weite
in sich hat und an die Ohren weht
​(Rainer Maria Rilke)


5​ A Messe da Saudade

​Comment fait-il l'homme invisible
​pour y récupérer sa rue sa paye son habitude
​pour ne pas changer de rails à son insu
​et ne jamais retrouver son aiguillage?
(Daniel Biga)


6​ À Esperança

​(...) Pousam
​as flores, como se à distância,
​saudoso as devorasse o latido de um cão. Silêncio
​(Décio Pignatari)

Vou voltar. Sei que ainda vou voltar.
​Não vai ser em vão que fiz tantos planos de me enganar
​Como fiz enganos de me encontrar
​Como fiz estradas de me perder
​Fiz de tudo e nada de te esquecer.
(Chico Buarque de Hollanda)

Um caminhante cansado como um sonhador e muito saudoso
entre pessoas que falavam um grego diferente.
As palavras que levara como provisão para o caminho de viagens pereceram entrementes.
(Chaim Guri)


III NOSTOS

1​ Penelopoeisis

2​ As Flores do Olvido

3​ Riverrun


rio fluindo sob a casa, correnteza
​carregando os dias, os cabelos
​(João Cabral de Mello Neto)

​... A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem.
(Carlos Drummond de Andrade)

Quando, de volta, viajares para Ítaca,
Roga que tua rota seja longa,
Repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
(Konstantinos Kaváfis, trad. H. de Campos)



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I-TELEMAQUIA



Asterion


inintencionalmente persisto
naqueles pensamentos-prurido
que o Sr. me antiprescreveu

mitomatizo
doses de comandos-pílula
imaginários como o céu da boca:
proibido desligar
chato contar os sonhos
favor não deitar na grama
- desperto convencido e volto a dormir feliz

talvez eu não sirva para este mundo
pleno de pernas e de braços
cheio de trustes e de gente falando inglês

eu que estive no dédalo sem pistas
sempre em busca de saídas
às esquerdas
às esquerdas

e que sou tantos que me absinto
e o que não sei quem sou
labirinto

o mundo-vórtice me envolve
como homens cheios de braços
como braços cheios de mãos
como mãos cheias de dédalos






II- ODISSÉIA


1. A Concha Acústica

hoje não escutaremos senão o mar
o mar-marasmo, o mar-do-meio
começo e fim do mundo,
o mar da vista e o mar
a perder(-se) de vista,
o mar rapace que lambe os pés apressados,
o mar de embalar-se e de amarrar-se,
o mar de sonhar e de catarse

hoje não escutaremos senão o mar,
o mar-útero, noturno, profundeza,
mar manhã mãe do dia madrepérola,
o mar maduro, mulher e semente,
nuvem líquida de náusea e naufrágio,
redes de virgens-peixes (ave ao avesso)
banhando-se no ar em pêlo

o mar rugindo feito bicho ferido
nas pás dos caminhos,
o mar excessivo e assassino,
há que temer seus tantos perigos,
pois foi o medo, o canto de sereia do inimigo
que sempre laçou os nossos destinos
nas malhas mortalhas do mar

o mar, nosso espelho,
cuja água não se detém e transborda:
assim o amor que nos une
um no outro
e que louco nos confunde
como deus e criatura
de um só objeto de amor

mas também a fonte de onde
exsuda o amor mais esquivo-
aquele que temos em nós mesmos,
quando na água derramado
afunda num tropeço o sujeito
reflexo adentro, e, abismados
nos frangimos e nos perdemos

hoje só escutaremos o mar onde chora
uma represa do nosso olhar,
e aquilo que o sal conta às ondas
diz nesta concha o mar o amor
o mundo na minha mão,
por isso não cantaremos, não escutaremos
senão o mar




2. Infinítaca


Ó Calipso, não tentes
prender-me às tuas paragens,
que o destino ao pé do Fado pertence,
e dele só conhecemos o rumo, nunca as viagens.
Melhor ansiar eternamente o instante,
que desconhece depois e antes.

Ó Carinho, não demora
que cedo ou tarde arda a hora
de fogo que chama aurora.
Entrementes nos resta todo o tempo do mundo,
que, todo somado, noves fora,
existe só no agora.

Nem importa se gastemos a hora,
que o tempo, posto gerar-nos,
igual nos devora. E, portanto, moventes,
acabamos no mesmo lugar,
pois a estrada de perder-se é a mesma
estrada de voltar:

A estrada que leva
de Ítaca
para Ítaca
no mar do mesmo
desliza
infinita.




3. Descida à Temporada da Espera


Brotei do túmulo
De carne em que fui enterrado
Sem nome de tão mudo.
Errei no dédalo
Do mar claro e permeável
Às idas e vindas
Infindas

Percorri o deserto em que a busca deserta o perdido,
E o areal é mais que o real coercivo.
Onde apenas as sereias da esperança emprestam
Olvido mouco às prosas da procura.
Enquanto conchas telepáticas marulham
No sulco da quilhas por onde o mar caminha:
Não é ainda... Não é ainda...

Não perca o remo,
o rumo,
as estribeiras.
A travessia talvez dure
um mês, um ano,
a vida
inteira.




4. O Sonho dos Mortos


O tempo passa varrendo as estações em fuga-
nós ficamos parados, sem nunca descer.
Foi Ninguém, Ninguém disse
aqui ou onde ou quando parar.

A viagem aportou na perda.
O mar vazio deslizando à deriva.
Da janela do tombadilho se divisa
a vegetação que medrou em pedra.

Inútil invocar as palavras,
sua lembrança nos escapa
pelas madeixas dos dedos como areia
fina, vazando o crivo das retinas.

O mar regurgitou as nossas ofertas
e nos cuspiu nesta nau deserta.
Antes, ilhas enlouquecidas
risonhas faziam visita.

Contudo, ao longe, a dança
de um fogo turvou o contorno
do horizonte com o seu velo nubloso
de fumo de esperança.

Suspeito que nunca seremos os mesmos.
O mar lavou-nos há muito tempo,
mas nós,
nós permanecemos aqui.

Senão, por que nos beiram
as quimeras da arribação,
medusas que transformam
palavras em pedras,

Contaminando de inércia
as velhas conchas faladeiras
em que falava o mar
nos fingindo escutar?

E o que nos fabricam nos sentidos as sereias?
Tecem redes do mais puro silêncio,
roteiros em que o esquecimento
se desfia para nos esquivar.

Hoje, no lugar onde antes tudo se passava,
a mó do olvido move nuvens estáticas
e os mortos que embala
já não podem despertar.

Parto
e porto
prossigo
parado.




5. A Messe da Saudade


saudade é um lenço
​drapejado na memória,

é um parir pra dentro,
​a acromegalia das horas,

o rosto ajanelado do passado
​no umbral de uma esperança imprestável,

que, posto falso,
​é ouro e reluz,

é uma desmesura da luz,
o estouro da manhã, é amanhã,

a vingança do que poderia ter sido
​ante a irrealidade do que existe,

porta escancarada pro infinito,
dos modos do não-ser deve ser o mais triste,

​mais que voo, estouro,
é o que não tem chão nem pouso,

a visita indesejada (da Indesejada), o lado avesso da hora,
​uma vassoura atrás da porta,

na cabeça, uma calva,
dor que em nós se esquece, e que não se esquece,

a fumaça em que não se mais divisam
​os escolhos da escolha e os muros do destino,

é o descuidado de si,
​meu vagar sem nome ou rosto,

é o outro
​do olvido

- saudade é uma messe de desatinos





6. À Esperança


A esperança, a verdadeira esperança não se perde
no afã tristonho de incitar-nos.

Não nos conversa da janela,
barganhando tempo com a promessa

de ócios diversos nas ditosas distâncias.
A esperança não é o que nos move,

mas o que, de tanto mover-nos,
se descobre também movido.

Se migra de boca em boca,
Quando é que pousa? Não sei.

Mas se com ela cruzo numa destas ilhas,
quem sabe acabo encontrando a minha.

Meu saudoso cão, manso e bom como um domingo,
me reconhecerá pelos meus signos,

me virá beijar e me dirá bem-vindo
(e que falta que fez e que festa que faz

comigo).
Abraçarei meu filho,

mas se ele, por desuso,
não sabe mais quem sou,

o saúdo
lhe pregando um susto!

À minha mulher, que me tomará por um estranho,
direi que estranho mesmo é que ela tivesse

com este estranho
um encontro marcado,

escorridas as dores e seca a fonte,
escutaremos sem música e dançaremos parados.

Então a demora, tão enfadonha,
me dirá toda risonha:

esses anos sem pátria e sem parusia,
não terão todos valido

menos que uma só hora
deste único dia?

Não sei. Sei apenas que a viagem,
a verdadeira viagem,

me desviará muito além das divisadas paragens,
rumo a uma terceira ou quarta margens.

Lá encontrarei meu mar e minha mãe,
os quatro costados do lenho do meu cavalo,

as sombras que fiz
e as que fizeram em mim.

Reencontrarei o tempo que me havia desviado,
o tempo que dói nas juntas,

já sem gonzos,
cego e alquebrado,

e eu, velho tolo,
só então vou dar por isso:

ao longo do longo périplo da espera
foi sempre o tempo meu mais fiel amigo

- o tempo me guardou e me levou
consigo.







III NOSTOS



1. Penelopoiesis


treva a treva a parca tece
sem nós e sem meada
a trama no fio sem termo
e o texto baldio cresce

tece como quem cita os versos de uma prece
ou como quem se esforçasse por entendê-los
com o velo infinito dos próprios cabelos
amarra o enredo que só por si repete-se

penélope não tece
o tapete que pisa a sala
tece o que cala e esquece
tece o avesso da malha

tece e anoitece
teia e mortalha




2. As Flores do Olvido



Sobre a nossa velha cama te vejo
na fronda dos anos plantada,
gasta mas sempre casta. Então percebo
que os veios do tempo sobre o tronco áspero
repetem os sulcos das rotas da minha cara.
Estou velho, ainda mais velho que o mundo,
tenho a idade das coisas e também confundo
em mim o que sou pleno, do tempo isento,
e o que sou apenas nele, pois nele me estendo.

Mas é o tempo vivido que em nós se grava,
Não o que não se viveu. Este somente passa
sem deixar marcas. É o algoz dos desatentos,
e as cicatrizes que lanha só ardem por dentro.
Já estes talhos que com orgulho ostentamos
são glórias, são vitórias provisórias
na batalha que travamos contra o nada,
mesmo sabendo que a palma da vida
sempre esteve irremediavelmente perdida.

Reencontrado, o tempo haverá de nos prover
modos mais mansos do tempo de se perder.
Maduros, conheceremos os frutos
de uma segunda primavera. Repara bem:
nunca os dias foram tão extensos
- se estenderam para abraçar o nosso abraço
e hoje carregam sombras mais densas apenas
para melhor acomodar os nossos cansaços.
Não olhes mais para trás ou lá te empedrarás.

A vida e o tempo moram mais além.
Não falta muito.
Te apressa e vem.





3. Riverrun



Rio-recorrente
irresistível

(En)tropismo
das unhas
dos dentes
dos filhos,

o tempo dobra sobre si mesmo:

Narciso ensiamesmado
sobre a pele desatenta de um lago
como foto – instante congelado,
ou como carta de baralho

e então, apenas flagrado,
foge como peixe assustado
entre a rede das mãos inesperadas.

Perplexo retraço
uma estrada que demanda
o fim pelo começo.
Contudo logo percebo
que pensar o tempo
sem tamanho
é vão engano,
pois o tempo sem costura
nunca amarra num conceito,
e mal pensamos colhê-lo,
pôs-se há muito em fuga.

Riocorrente petição do princípio
consigo mesmo incompossível,

Riocontracorrente fluindo
do descomeço ao infinício:

​o tempo se entorna, corrói,
eternamente retorna
as cinzas que mói.

Um vento gelado atravessa a casa.

Traz visitantes,
são os domésticos fantasmas
das horas extintas
(aquelas que por pressa ou preguiça
não ousamos usar).

No ar estremecem
uns pesados gestos,
que preenchem
cuidadosamente
com ruídos molestos.

Inspecionam os quartos,
olhando pro lado
das mesmas paredes que atravessaram
Num quadro torto esquecem
mais amarelo o amarelo
dos sorrisos forçados,
apagando, como por relaxo,
amigos da fileira dos retratos.

Falam nervosamente
e serenamente se calam.
Dizem querer ficar
mas no fim sempre negaceiam,
não sabem mesmo ficar presos,
e o que foi foi, já não tem jeito
senão recomeçar.

Tropeçam num tapete puído,
se despedem com um cheiro renhido,
viram causos, viram história,
num ponto cego, desaparecem.

O tempo que nos usa,
e para o qual se curvam
as mais altas montanhas,
redimido perdura
em nós
como lembrança.

Tuesday, November 29, 2011

A ESPÉCIE PALAVRA


palavras palavras
palavras nunca se calam,
mesmo engolidas ainda falam
numa forma de fala amígdala

alquimista de araque,
vendi por verbo a minha carne,
meu rico butim de moedas forjadas,
meus gestos nervosos de bailarina surda

a palavra telepática
paralisada na garganta faz
esforços alpinistas
para poder ser dita

A CIDADE MÍNIMA


Fourmillante cité, cité pleine de rêves
(Charles Baudelaire)

Unreal city.
(T.S. Eliot)

a cidade mínima
compressa no tempo e no espaço
pílula anticonceptual pilha
descarregada de ossos

cidade surreal
cidade com medo de fechar os olhos
cidade recalcando pesadelos
impenetráveis como um texto de Heidegger

a cidade pesadelarmente sonhada
minimamente metaforizada
sem precisões nem arredondamentos sem
máquinas de sonhar

Monday, November 28, 2011

A BORRA DE CAFÉ NO FUNDO DA XÍCARA


Du merkst nicht, daß du nichts merkst.
(Hans Magnus Enzenberger)

A borra de café no fundo da xícara. 11
Não deixarás de notar o morno estigma:
brilho negro cintilando ali no fundo
antes quase branco na louça. Descuido

meu de ter notado e deixar que a consciência 11
se emprenhe em alucinações visivas, entre as
quais um gancho e junto um laço dito aziago
os quais, por bem ou mal, prontamente esmago

vertendo mais café na taça presságica, 11
meio ao ruído do convivial alvoroço
do costumeiro cigarro após o almoço
e a segunda cigarra que chama à fábrica.

E, no entanto, esvaziado o copo, aquela 11
mácula insiste. E esgotada a pausa previne
que eu disfarce com mais líquido a sequela...
Só resta então a compaixão dos que me assistem,

e, com resignação, pondo a língua em riste, 11
anunciar a figura e o que significa.
Até que outro, após ríspida inspeção, diz-se:
Não, isto não é senão (sem modo ou mística)

a borra de café no fundo da xícara. 11

A ANTROPOLOGIA DO TERCEIRO HOMEM



Talvez por saber o quanto custa estes dias trocar um hábito.
Ou quem sabe às expensas da cabeça encanecida,
sobre o poste da nuca acesa, feito imensa ampola incandescida.
Então senão por conta da ajuda pronta das desculpas que se conta
toda manhã para vencer o autodesprezo e despertar tão cedo.
Com tantos recursos desses ou nenhum deles,
ele ainda corre apressado ao ponto do lotação, de onde
as pernas frágeis prosseguirão transportando o mundo,
e não o mundo a ele – passageiro às avessas.
Não se irrita mais nem com os vespertinos temporais.
O guarda-chuva, o esqueceu num dia desses, mas não guarda indício
sequer de sua aparência, e há porventura mágoa de tudo daquilo
que é tão indistinto que só por esquecimento nosso aborreça?
No trânsito paciente retoma fôlego para prosseguir na marcha do dia,
que exibe os dentes e se promete inclemente na sua incipiente euforia.
E caso o seu passo vacilasse, por acaso alguém perceberia?
Sim, como quando alguém interrompe o fluxo da fila,
e impropérios irrompem menos contra traidor da pressa compartida,
do que contra a sua mãe, embora ironicamente já não esteja viva.
E essa olímpica indiferença dia a dia adquirida
quase o torna tangível como qualquer coisa.
Porque homens não, são criaturas angelicais, homens
não se tocam, furtam-se ao contato como negativamente imantados.
Por isso, se não consegue se fazer ver,
não é raro que de vez em quando outro corpo, apressado,
contra o seu trombe.
Se diz bom dia aos vizinhos é pura preguiça
de reajustar o percurso das manhãs quando secas.
Se dormita no ônibus ainda na ida é puro descuido,
ora, não que cansaço também não seja.
Se devora de um saco mais um naco de pão
ou se hábil engole enquanto o carro sacode
outro gole esquivo de água,
é que todo esforço, mesmo diminuto
poderá servir para, ao esquecer a vida sobre o banco,
recolher horas mais tarde a mirada
panorâmica do dia inteiro que disparou em branco
sem que se esforçasse em apanhá-la.
Crianças murmuram por moedas, o amanhã não espera.
Todo o esforço de todos concentrados no que tem de ser feito
e depois refeito, todos os minutos abortados pelo que não existe ainda,
e, tendo existido, já não tem sentido, outro vazio preenche a meta.
E que tolo se sente por somente agora haver percebido
que foi sempre no futuro que tínhamos vivido.
E se ele ao fim da jornada, ao calar de tantos gestos e desgestos, repousa
sobre a maciez da noite como a cã sobre a fronha,
talvez seja porque a noite que sonha
vaga e incomunicável como uma xícara
(estranho objeto de ausências),
sem mentir lhe prediga o achado de certa manhã,
não aquela que com as garras retesas amanhã o espera
impaciente como a mosca que beira o irresistível prato de resistência,
mas manhã em todo e para todos comum, mínima e amarela,
manhã há-de-haver-manhãs-mais-claras-e-mais-belas,
mas manhã que por não ser ainda, vive com sua centelha mínima,
e precisamente porque igual e nunca a mesma manhã
a todas as outras clarificasse.
E afeito à espera, atento como quem assistisse a um filme,
distingue da janela do veículo a imagem da imagem a repetir-se
sob a legenda dos dias inanes e sem nome de quem vivesse
a vida de outro homem.